04/04/10

Bate leve, levemente como se de uma memória se tratasse


Nasceste Homem. Daqueles que têm as botas marcadas com terra, as mãos calejadas e as roupas salpicadas de tinta.

Foste pintor e viveste da terra, dos frutos do teu suor.

Apadrinhaste-me e desde então fui sempre a primeira.

Tinhas as mãos ásperas e grandes. Apertavas as nossas mãos como quando manejavas a enxada e sorrias.

Caías facilmente mas nunca te magoavas.

Prometeste-me um vestido branco para casar. Quando eu casasse. E querias bisnetos.

Eu não me casei. Nem te dei os bisnetos. Ainda.

Tinhas orgulho na terra e aquilo que dela colhias era nosso. Teu.

Era ver-te numa ansiedade mal as uvas despontavam, como se de mais um filho para nascer se tratasse.

E regalavas-te com um bom copo de vinho, feito com as tuas uvas. Nem paravas no primeiro.

Depois paraste. Ficaste-te pelo primeiro.

O cigarro também parou aos poucos. Não devias.

Não sabias ler e nem precisavas. Entendias o sol, a lua e as estrelas. A matemática e a terra. E sabias pintar. E rezavas histórias.

Falavas muito. Só. Numa solidão que não se percebia.

Os cabelos eram brancos. Ultimamente eram todos brancos.

Em tempos foram negros. Depois cinzentos, depois brancos.

Foi quando os teus cabelos se tornaram brancos que tomaste uma decisão e nesta idade as decisões são para o resto da vida. Podem ser as últimas.

Depois caíste e levantaste-te uma só vez.

Viveste da única forma que sempre te ensinaram. A terra chamava-te e tu ias.

Depois a terra chamou-te e tu não voltaste.



Este és tu, visto por mim. Agora que o tempo passou consigo ver-te com mais clareza. Foste Homem. Pintavas. Erguias montanhas. Eras o meu avô.


14 comentários:

  1. eu não tenho recordações de nenhum dos meus avos, nem dois aninhos tinha quando fiquei sem o segundo.

    Já a minha avó Irene, que morreu à dois anos, está aqui dentro de mim. Deixou memórias, cheiros, gestos que serão sempre únicos.

    A minha Nona também falava tanto no meu casamento e no netinhos que haveria de lhe dar...

    Sinto muito a tua perda, mas acredita que ele estará sempre junto a ti. E vai sempre proteger a sua princesa.

    Beijocas muito grandes e um abraço muito forte

    ResponderEliminar
  2. Comoveste-me, acredita.
    Bem escrito e no alvo, como é costume.
    Bjito!

    a) flordocardo

    ResponderEliminar
  3. Tão bom recordar quem efectivamente amamos! Recordar quem está dentro de nós... quem não sai do nosso pensamento e principalmente no nosso coração...
    Daqui a dois dias a minha Aldinha faz 4 meses que se foi... acredita, que ela se foi mas sinto-a como se estivesse presente, sempre! Por ter sido uma grande mulher na sua altivez e sabedoria!
    Após a sua morte, 5 dias depois consegui escrever um post sobre ela e foi angustiante passar para texto todo o turbilhão de emoções que estava a sentir... acredito que se passou o mesmo contigo...
    Contudo, quando terminamos, sentimos uma sensação de paz...

    O meu pensamento desde que partiu, para não me ir a baixo é que onde quer que esteja está melhor, porque está em paz, está a descansar e sempre a olhar por mim... seria egoísmo da minha parte a querer aqui na terra a sofrer... queremos bem a quem amamos e ela merecia paz e tranquilidade e foi o que teve quando se foi...

    Doi muito... o vazio é brutal mas o tempo cura tudo... e o melhor que os nossos avós nos deixam é as lembranças das suas vivências connosco e isso levamos para todo o sempre!

    Força!

    Beijinho-abracinho-miminho:)

    ResponderEliminar
  4. Eu fui criada pelos meu avós, e infelizmente ja faleceram os 2, mas ao ler este texto ate me vieram as lagrimas aos olhos!!!

    Mal comecei a ler lembrei-me imediatamente deles!!

    Bjito grd*

    ResponderEliminar
  5. Gostei muito do teu texto. Eu também tenho boas recordações do meu avô!!kiss

    ResponderEliminar
  6. Gostei muito destas frases soltas. Parece, é uma vida.

    Imortalizas-te-o.

    ResponderEliminar
  7. Já se passaram tantos anos da suas partidas ainda recordo dos meus, mas especialmente do meu avó paterno... só posso dizer que tenho imensas SAUDADES DELE...

    Beijinhos

    ResponderEliminar
  8. Tive o prazer de ler este post ontem como tu bem sabes e durante a noite voltei a ler mais 2 vezes, hoje dou por mim a ler outra vez. Está magnifico, um hino ao teu avô. Sinto uma emoção profunda ao ler isto amei muitos parabéns e obrigado por partilhares esta obra prima da tua autoria :)
    BJ

    ResponderEliminar
  9. Que texto mais lindo! Dos mais lindos que vi no teu blog até hoje... Também me emocionei ;-)

    Infelizmente não tenho recordações de nenhum avô. Não cheguei a tempo de os conhecer. Ao ler o teu texto tive vontade de saber o muito que tinham para me ensinar :)

    Bjs*

    ResponderEliminar
  10. Excelente texto. infelismente não conheci nenhum dos meus avôs. Mas conheci as duas avós. Compreendo as tuas palavras.

    Um beijo

    Excelente texto.

    ResponderEliminar
  11. Fogo rapariga tu nao existes. Acredita ja tou a chorar, tu descreves-te tão bem o nosso avô mas tão bem que enfim, nem palavras tenho para...
    Ainda por cima acabei de chegar de viagem e já me pões a chorar :'(...és uma exelente escritora, e volto a dizer que devias apostar nesse teu talento único e maravilhoso. bj
    rubas

    ResponderEliminar
  12. Muito bom! Fiquei com a lagrima no canto do olho...
    Passamos a vida a reclamar de tudo e de todos, mas a verdade é que nao há nada mais importante que termos as pessoas que amamos sempre do nosso lado...
    E sentimos isto mais afincadamente quando alguma parte definitivamente.
    Mas havemos todos de nos encontrar um dia!
    Tens bom coraçao :')
    Beijinhos*

    ResponderEliminar